segunda-feira, 22 de setembro de 2008

primeiros escritos: quais sao minhas teorias, meus achismos?

Uma das minhas primeiras tarefas lançadas pela minha orientadora foi escrever a respeito de minhas teorias. E isso numa proposta tri com gostinho de proibido, aquela de poder sair afirmando coisas mil sem ter que se preocupar com referências, de onde saiu, quem afirmou, com base em que... Eis alguns trechos que recupero e comento relacionando um pouco com o momento pós chute no balde.

"Os órgãos possuem a capacidade de sustentação interna. As células compõem tecidos, estes os órgãos. Cada célula possui a propriedade de respiração celular que garante o seu tônus e consequentemente o tônus dos órgãos que compõe. Entendo por tônus uma sustentação própria, pressão tridimensional do órgão, para todos os sentidos, excêntrica e concêntrica, e que interfere diretamente sobre a sustentação e energia da estrutura musculo-esquelética. Não é somente a musculatura que sustenta nossa estrutura óssea, também o tônus muscular nos dá essa noção de volume e recheio e nos mantém em pé. A idéia de irradiação está igualmente associada a isso. Cada célula irradia, e assim cada órgão e assim o corpo todo.
Posso associar esse tônus à oposição centro de força (quadril) e centro de leveza (peito). Se os órgãos da região abdominal, sobretudo, exercem essa pressão tridimensional, pressionam quadril e pernas em direção ao solo; e peito, braços e cabeça em direção ao céu. Isso fez muito sentido pensando a relação do corpo do flamenco que busca ao menos tempo terra e ar. O centro de força em direção ao chão, associado aos fatores de combate (forte, súbito e direto) e o centro de leveza buscando 'el aire', que não é leveza, mas que é fluxo de energia sem bloqueios, que se sustenta sem preguiça e sem esforço aparente.
Segundo Cohen, é possível sensibilizar os órgãos e iniciar movimentações a partir deles, ou ao menos trabalhar com essa imagem. Identificam-se suas funções e percebe-se que a iniciação do movimento se faz a partir deles. Estes movimentos, no entanto, não são meramente naturais e involuntários, precisam ser trabalhados através de um processo de conscientização da pessoa em relação a seus órgãos, pois estes se tornam acessíveis através desse trabalho. O que ocorre é que um movimento que poderia ser feito pelas camadas mais periféricas, como os ossos, pode ser iniciado pelos órgãos mais profundos, expressando-se pelo movimento conseqüente do osso. Essa mudança de foco mudará também a qualidade do movimento. Além disso, “trabalha-se a percepção dos diferentes estados de espírito e as sensações que emergem dos diferentes locais de iniciação do movimento.” (COHEN, 1993) Essas sensações e estados de espírito que Bonnie aponta como importantes nessa abordagem do movimento é que serão uma porta de entrada para o início do meu processo."

Muito legal como experienciar a raiva e o desespero como possibilidade para a minha pesquisa corporal me trouxe uma outra compreensão de tudo o que já tinha escrito e lido antes: as sensações como porta de entrada, percepção dos diferentes estados de espírito etc... Certo que não estarei sempre tranquila, ainda mais mexendo em tanta coisa; o quão pobre seria um trabalho que só conhecesse os caminhos fáceis para a auto-percepção. Além de pobre seria uma baita mentira!
Já identificar no meu corpo as sensações mais gritantes de pavor e furungar nelas, como proponho no parágrafo logo abaixo, acho agora um pouco viajandão demais, o quanto isso é possível. Como podemos ter controle sobre sensações muito fortes e com cara de destrutivas. Apesar de que essas sensações são sempre tão tematizadas no flamenco e era justamente esse o mistério inicial que suscitou todo o meu problema de pesquisa. Lembrei agora da JuPrestes dizendo que, em outras palavras, que a explosão do flamenco, o duende ou coisa assim, não é sentar e esperar que algo baixe, que algo ilumine, é muito trabalho e concentração. É de alguma forma explodir com controle. Contemplar um "descontrole" de sensações e jogar com elas, rindo da cara delas ou desafiando a sério. Uiuiui, será que isso já não é só poesia de novo?

"Acredito que se eu observar como o meu corpo percebe um estímulo e onde no meu corpo ele é sentido, eu possa acessar os órgãos envolvidos nessa sensação e que trabalhando esse órgão posso potencializar sensações e ações frente a esse estímulo para me mover. Mover-me não porque a coreografia pré-estabelecida está mandando, mas porque o corpo pede assim. Até que ponto posso tornar meu corpo assim tão autônomo de minhas vontades racionalizadas, fica a questão a ser debatida. Como posso deixar meu corpo em cena com o frescor de uma sensação percebida ali? O que é uma sensação percebida ali? Se eu acessar e trabalhar os órgãos envolvidos numa sensação corpórea eu consigo provocar sensações similares no público que me assiste? Acho que quero deixar o público sujeito a exatamente as mesmas coisas que eu, como uma forma de inserir na obra aqueles que me assistem."

Quais são as sensações percebidas ali? Isso é uma questão que me remete mais uma vez aos coelhinhos. Antes da estréia nós experimentamos apenas uma vez o que era a nossa obra. E isso aconteceu num ensaio aberto, nunca qualquer coisa foi experimentada de fato, fora do terórico e imaginado, antes disso. Parecia que precisávamos de todas as condições que fazem parte da experiência de apresentação para poder experimentar qualquer coisa, e a principal condição era a presença do público. Por mais que coisas sejam simuladas e testadas, parece que só o público pode levar uma obra de arte para além da esfera técnica e operacional. Só o público coloca no corpo do artista outras condições, outras sensações, e que, para algumas obras mais, para outras menos, fazem tanta diferença. Para Sobre Vomitar Coelhinhos o público era crucial, claro que muito em função da sua dramaturgia. Mas se faço agora um paralelo com o meu trabalho, pensando o flamenco, por mais que eu possa me deixar envolver pela música e por outros estímulos, a presença de um público provoca coisas que são únicas da experiência e que podem fazer o papel de passar a rasteira nas previsões de sensações (inclusive rasteiras positivas) ou podem também ser tema de pesquisa, como tem acontecido com as inclinações do meu trabalho. De nada adianta eu pensar em ser honesta se eu durante todo o processo não contar com as sensações que o público me provoca, porque senão chega na hora, posso muito bem começar a mentir. E posso mesmo, porque já fiz isso tantas vezes!

"Minha pergunta é: Como posso transformar sensações em movimento, através de uma atenção aos órgãos?
Meu objetivo é: dançar porque o corpo precisa, não porque foi combinado
Eu sinto saudade de: dançar com o meu irmão
Eu não quero: subir no palco e só perceber que estou num palco


O corpo é metáfora. O corpo biológico não existe. A realidade é metáfora.
Csordas: olhar somático na antropologia" Tá aí o Csordas com quem ainda vou aprender a jogar!

"Essa conclusão, que não é minha, mas construção científica e filosófica, surgiu por eu me dar conta o quão cética eu estava sobre toda essa idéia de movimentação dos órgãos. Explicar o corpo não é científico, é poético, é cultural, tanto quanto movimenta-lo.
Quando me deparei com o Body-Mind Centering e com a sugestão de que podemos ativar uma movimentação a partir dos órgãos, imaginava que existiria uma verdade a respeito das vísceras humanas que me colocasse em diálogo com a fisiologia. Podemos afinal mover nossos órgãos? Mas como se meus órgãos não são constituídos por tecido muscular? Comecei assim a lidar com uma idéia de tônus visceral, que os órgãos possuem um tônus em função da respiração celular. E que essa “energização” de um órgão teria tais ou tais efeitos sobre o meu corpo.
Sabemos que a respiração e o tônus muscular e visceral interferem nos fluxos do nosso corpo, como sangue e linfa. Eles têm papel fundamental na circulação venosa e linfática de retorno, por exemplo. Mas até onde vai um corpo fisiológico? Ele não existe sem metáforas.
Como interferir no tônus visceral pode repadronizar fluxos energéticos no meu corpo, interferir no meu estado de presença e alerta e na minha movimentação?
“A partir do momento em que bloqueamos ou dificultamos nossa respiração interna, começamos a matar nossa sensibilidade, a intuição, todo o corpo.” (Klauss Vianna)
Isso agora é super palpite: uma das diferenças entre a medicina ocidental e oriental é que o saber ocidental se construiu muito sobre corpos mortos – abrindo um corpo podiam ter uma visão das camadas mais internas do corpo e assim desenhar em detalhes cada parte do corpo e assim intereferir em absoluto sobre a imagem de como somos por dentro, o desenho de cada órgão, como ele se parece etc. Entre os orientais o corpo não é sangrado. Seu conhecimento se estruturou sob observação de corpos vivos e da energia em fluxo, resultando em terapias como acupuntura, shiatsu entre outras. Todo esse conhecimento oriental não deixa de ser mais uma forma de ver o corpo, de descrevê-lo; outras metáforas. Assim como também faz a medicina ocidental: metáforas através de desenhos, de mapas. Metáforas que são compartilhadas culturalmente. Em que medida não é preciso crer no processo de cura ou de descrição para que essas imagens operem no corpo de forma a se reequilibrar? É preciso crer no remédio para que ele cure, o que me leva a questão do doente no papel central para a cura, não mais o médico. Da mesma forma, o público se insere em minha obra de arte, uma vez que minhas metáforas podem de alguma forma ser compartilhadas.
O entendimento que temos do nosso corpo formula e reflete nossa visão de mundo. A bipedia e a postura ereta, por exemplo, colocam a cabeça como centro vital e de maior importância que nossos pés – assim como a pirâmide é a abstração de uma visão de mundo aristotélica.
“Nosso objetivo é compreender as relações entre a consciência e a na tureza orgânica, psicológica ou mesmo social” (Merleau-Ponty)
Nossas crenças, posturas, memórias e imagens são nossos coelhos e nossos coelhos interferem.
Assim como o corpo e os seus órgãos em movimento são metáfora, vomitar um corpo de dentro do outro também. Sobre Vomitar Coelhinhos também trata de uma metáfora, vomitar um coelho é uma metáfora, metáfora do nosso processo criativo, não só enquanto prática artística consciente e voluntária, mas também de nosso estar-no-mundo, incluindo tudo o que jogamos no mundo sem perceber. Porque só a nossa presença já interfere, já causa sensações. As interferências voluntárias e involuntárias nossas são os nossos coelhos. Vomitá-los pode ser automático e sem querer, ou doído e mesmo assim vital.
Assim como nós interferimos no outro, nossos próprios coelhos são o resultado das interferências alheias. É como sentimos o que o outro nos vomita. Dessas sensações criamos os nossos.
Criar um coelho é como gerar um bebê. Célula após célula elas se multiplicam e se acumulam. De um acumulado de células temos um bebê no útero. No estômago, o mesmo acontece com os coelhos. Referência após referência, elas se acumulam. De um mexido transforms estomacal das referências temos o nosso coelho. Que é dos outros, mas é meu, para em seguida ser dos outros de novo. Não estamos sozinhos nisso. Nada criamos do nada, somos o nosso arredor, o nosso mundo é nós. Dessa forma a noção de autoria se borra, mas de uma outra forma se afirma. O que é meu é só meu porque foi de outros, porque também é de outros. E por ser meu ele é único, único em mim e em meio a todos. É meu porque passou por mim e se transformou. Cabe aqui uma idéia de ancestralidade.
(...)
O que provoca no público o meu trabalho corporal que se desenvolve a partir dessa proposta dos órgãos? Ele potencializa a minha capacidade de comunicação? Vomitar o corpo. Um corpo de dentro do outro. O que esse corpo faz com o corpo de quem me assiste?


UMA IMAGEM: um amontoado de coelhos e no meio um duende. Porque um duende também precisa ser vomitado.
Vomitar coelhinhos é afirmar o corpo como local de criação. Que lugares em mim criam? Aqui, posso falar de lugares enquanto órgãos?

Como tu deixa o movimento acontecer? como tu deixa um coelho se formar? Como tu aprende a não trancar o fluxo? Sabendo que tudo isso acontece dentro de ti... Essas questões me levam a técnica de release, que consiste basicamente em identificar o fluxo e deixa ele acontecer."

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